colaboração 3: NA TRILHA DOS BUGIOS

Hoje publicamos mais uma colaboração, quantos amigos talentosos! 

 Já sabíamos disso e por isso também convidamos a amiga Érica para participar e contar sobre um de seus amores, os macacos bugios 💗

Sem mais delongas, porque o texto está demais, segue este lindo depoimento, obrigada Érica!

    🐒

         Olá, prazer. Eu sou a Érica Amaral, sou bióloga e fui convidada pela querida Maria Luiza a contribuir com o Blog falando sobre o que eu mais falei nos últimos anos: macacos. Não é um macaco qualquer, é o bugio-ruivo. Aquele do “vozeirão” que você provavelmente escutou se você teve a sorte de estar em áreas de Mata Atlântica, de onde eles são nativos e onde alguns grupos ainda residem e resistem. 

 

Macho de bugio (Alouatta guariba clamitans) fazendo o “ronco” do bugio com seu vozeirão. Itapuã RS.

            

            Passei os últimos anos falando deles porque os estudei ao longo do meu mestrado. Sendo assim, quando Maria me convidou para escrever sobre essas lindas criaturas, eu logo fiz o que fui treinada para fazer ao longo da minha educação como bióloga: fui atrás das referências científicas. Depois de tanto tempo dentro de um ambiente acadêmico, onde o que você diz só pode ser validado por referências de outros pesquisadores, foi o passo natural. Escrevi como se fosse passar pela banca do mestrado novamente. Até que parei. Pensei. E me questionei. O que é que eu estava fazendo? Para quem eu estava escrevendo e para quê? Pausei a escrita. Abri de novo o Blog da Maria. Li o nome do blog “É sempre tempo”. Reli algumas de suas vivências e me dei conta de algo que estava dormente, debaixo das referências, soterrada pelas análises estatísticas e acúmulo de títulos em nome de reconhecimento. Estava ela ali, sozinha e um tanto esquecida: A minha genuína paixão pelas outras criaturas que dividem esse Planeta conosco. Que começou quando era uma criança que passava muito tempo sozinha e se perdia no tempo observando a rotina das mamangavas, dos passarinhos e outras vidas que habitavam ou visitavam aquele mini mundo que minha mãe chamava de quintal de casa. 

            Foi assim que percebi que com o convite de Maria eu tinha uma oportunidade de ouro nas mãos: Pela primeira vez em anos, escrever sobre uma das minhas paixões sem engessá-la com referências. Então decidi contar para vocês o que é que eu encontrei dentro de mim, quase que sem querer, seguindo a trilha dos bugios.

            A primeira vez que vi um bugio foi em 2016 no Parque Estadual de Itapuã. Um distrito da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul. Uma professora da UFRGS, Márcia Jardim, nos levou para uma saída de campo. O objetivo era encontrar os grupos de bugio e contabilizar quantos deles haviam naquela área. Lembro como se fosse ontem, dividimos a turma em grupos menores de pessoas, pois os bugios quando não acostumados com a presença humana, tendem a afugentar-se quando há muita gente. Lembro de estar como apenas outros dois colegas buscando avistar bugios. Depois de um certo tempo de caminhada em silêncio, encontrei uma fêmea de bugio, bem quietinha na árvore, segurando seu bebê no peito e observando a movimentação que acontecia abaixo dela. Meus colegas só perceberam que eu tinha avistado algo quando notaram que eu, imóvel e com um sorrisão no rosto, não parava de encarar aquela “árvore”. Foi ali. Foi amor à primeira vista. Naquele dia decidi seguir os macacos. E não fazia ideia do que me aguardava.

            Decidi incluir os bugios e outros macacos na minha vida de qualquer forma. E a forma que encontrei foi fazendo pesquisa. Todas as decisões que tomei a partir daquele momento, foram para que o contato com esses animais não fosse perdido. Foi assim que, depois de certo tempo, comecei um mestrado. Quis validar socialmente a minha ânsia de estar no mato, quis ser vista como bem-sucedida na biologia e pesquisa. E deu tudo muito errado (pelo menos eu achava que tinha dado tudo errado). Em Viamão e em Porto Alegre existem produtores rurais de alimento orgânico. Os agricultores que vendem frutas, no entanto, tinham uma certa dificuldade em relação aos bugios. Bugios também gostam de frutas orgânicas, mas não costumavam pagar os produtores quando comiam as frutas direto do pé em seus pomares. Lá estava meu projeto. Queria entender o quanto de prejuízo esses bugios davam aos produtores e qual a relação desses produtores com esses animais. Perfeito. Maravilhoso. Comecei a busca por estes produtores que tinham seus pomares visitados por bugios. Encontrei e selecionei três sítios para fazer meu trabalho. Entrevistei moradores e/ou donos de pomares que de alguma forma conviviam com os bugios. Um deles foi o Sítio Capororoca em Porto Alegre, onde anos depois conheci a Maria Luiza. 

 

Uma fêmea de bugio (ela tem a pelagem mais clara que outras fêmeas da espécie porque tem uma condição genética parecida com o albinismo chamada leucismo) e seu filhote se alimentando de caqui em um pomar em Itapuã.

 

            Resultado: Meu projeto não deu certo. Os bugios não apareceram ou apareceram muito pouco nos pomares quando eu estava os acompanhando. Para a comunidade científica meu trabalho de 7 meses monitorando bugios e pomares não valeu de nada. Eu não tinha dados suficientes. Meu trabalho não seria aceito. E foi aí que eu achei que TUDO tinha dado errado.

            Só que enquanto “tudo dava errado” na minha pesquisa, eu estava convivendo com pessoas que moravam nesses sítios. Eu conversava com elas sobre o que elas achavam desses animais. Eu presenciava o dia a dia nos sítios e conheci várias pessoas que levavam essa vida no campo. Por causa dos bugios eu estava imersa em uma realidade bem diferente da qual eu estava acostumada na cidade. Por causa dos bugios, eu fui convidada a sentar na mesa e dividir refeições com essas pessoas. A acordar antes do sol nascer e tomar café com essas pessoas. A escutar sobre seus dias, escutar sobre as plantas que estavam semeando, cuidando e colhendo. A presenciar dificuldades e belezas da vida no campo. Vida esta que está sempre rodeada de outras vidas. E foi assim que eu percebi que a criança que se perdia no tempo contemplando outras vidas, ainda estava ali. Eu percebi que a vida que eu tanto queria de estar rodeada de outras vidas era possível no campo. Eu estava em um jardim muito maior.

 

Pedacinho do Capororoca em outubro de 2018. Onde eu aguardava os bugios aparecerem.

             

            Nesse processo construí verdadeiras amizades. Aprendi TANTO sobre plantas, sobre solo, sobre uma vida que não precisava estar engessada com referências e expectativas externas de ser “bem-sucedida”. No Sítio Capororoca eu me percebi genuinamente feliz por estar imersa nesse estilo de vida. Foi ali que percebi o quão delicioso é colher a própria comida. O quão bonito, trabalhoso e recompensador é estar em sintonia com a natureza. Claro, o mestrado ainda deveria ser concluído. Seria impossível concluir no tempo ideal. Já não tinha minha bolsa, já não conseguia pagar aluguel e contas em Porto Alegre e ainda assim precisava entregar uma pesquisa bem-feita. Foi quando a família do Capororoca me convidou para morar com eles até que eu concluísse a nova pesquisa. E aí a imersão no campo foi ainda maior. 

            Eu os ajudava a plantar, regar, cuidar, colher e preparar os alimentos que seriam comercializados na feira de orgânicos. E também via novas pessoas chegando até lá para fazer voluntariado e se encontrarem nesse estilo de vida. Um ano depois que minha pesquisa deu errado eu estava sozinha sentada embaixo de uma árvore de mexerica (sou Paranaense e é assim que chamamos a “bergamota” dos gaúchos, risos). Naquele famoso rito de inverno, comendo mexerica no sol. Foi quando vi um bugio, atravessou a rua (porque apesar de viverem nas árvores, os bugios conseguem se deslocar bem pelo chão), subiu em uma árvore, olhou pra mim e seguiu se movendo graciosamente pelos galhos em direção ao terreno do vizinho. Foi então que lembrei de uma senhora de Itapuã, Dona Ivaneri, que entrevistei porque tinha seu pomar frequentado por bugios. Quando comentei preocupada sobre o andamento da minha pesquisa que não estava dando certo como gostaria. Ela me disse “Quanto mais velha a gente fica, mais a gente entende que nada na vida dá errado”. Na ocasião eu disse pra ela que precisava amadurecer, pois ainda enxergava o que estava acontecendo como um desastre. Ela sorriu e disse que eu entenderia um dia. Acontece que esse dia veio antes do que eu pensava. Pois naquele momento, vendo o bugio passar enquanto eu comia uma mexerica e sentia o calor do Sol eu a entendi. Nada havia dado errado. Eu estava onde precisava estar e os bugios me levaram até lá.

             É sempre tempo de desengessar nossas vidas das expectativas desse “sucesso” que tanto abdicamos de nós mesmos e da nossa essência para atingi-lo. Na trilha dos bugios eu acabei reencontrando outro macaco: aquele que se perdia no tempo contemplando outras vidas e se sentia genuinamente feliz por isso, eu. 


Fêmea de bugio-ruivo sendo fotogênica :)


@ericadoamaral no Instagram

 e-mail: ericadoamaral@gmail.com

 

 Deixem seus comentários e lembrem-se de se identificar! 

Até mais!




 

 


 

 


 
 

 


 


Comentários

  1. Erica, que lindo capítulo de história de vida este teu relato. Amei!
    Sempre é tempo, mas é preciso estar atento no aqui e agora, para perceber as belezas e as voltas que a vida vai te presenteando. Gratidão e sucesso nos próximos capítulos de vida. Armani.Teresa

    ResponderExcluir
  2. Érica, quanta riqueza absorvida e descrita em cada olhar atento e integrado com a natureza.
    Gratidão.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário e não esqueça de se identificar!

Postagens mais visitadas